Todos nós temos nossos personagens e textos preferidos nas Escrituras, não é verdade? Porém, também é verdade que essas preferências vão mudando à medida que Deus fala conosco por meio de outros textos e personagens. Assim, a nossa relação com ele e com a sua Palavra vai ficando mais rica e mais completa.
Faz anos que eu venho “engatado” no primeiro livro de Samuel, em especial no seu início. A “ex-estéril” Ana, o velho sacerdote Eli e o fascinante menino Samuel têm sido companheiros na minha caminhada para aprender a escutar a Deus e a viver segundo a sua Palavra.
Foto: pixabay.com
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Essa Ana é incrível
Os dois livros de Samuel são de fato um só e têm, segundo Eugene Peterson, quatro personagens principais: Ana, Samuel, Saul e Davi. Eu considero muito importante o fato de o livro começar com uma mulher estéril em oração. E a história continua com ela experimentando o milagre de Deus em sua vida, engravidando e sendo consistente com a promessa feita em sua oração de agonia. O nome que ela dá ao menino expressa o desejo de que ele leve adiante o nome de Deus, e ela o entrega à causa de Deus conforme prometido. Podemos ouvir a própria Ana cumprindo a sua promessa quando leva o pequeno Samuel à casa do Senhor em Siló, depois de desmamá-lo. Em conversa com Eli, o sacerdote, ela declara: “Meu senhor, juro por tua vida que eu sou a mulher que esteve aqui a teu lado, orando ao Senhor. Era este menino que eu pedia, e o Senhor concedeu-me o pedido. Por isso, agora, eu o dedico ao Senhor. Por toda a sua vida será dedicado ao Senhor” (1Sm 1.24).
E o texto continua dizendo que Ana “ali adorou o Senhor” (1Sm 1.26-28). Ana regressa a Ramá, o povoado onde moravam, e deixa o menino aos cuidados de Eli e uma nova história começa, que afetará não apenas o reduto da “casa do Senhor”, mas toda a nação de Israel.
O povo de Israel estava, de fato, precisando de um novo momento em sua história, pois o que estavam vivendo e experimentando os distanciava, passo a passo, da promessa que Deus lhes havia dado por meio de Abraão, Moisés e Josué, por exemplo. Neste processo de afastamento de sua vocação, mediante a qual viriam a ser um grande povo e uma bênção às nações (Gn 12.3), o sacerdócio estava corrompido, os israelitas vinham perdendo a batalha para os filisteus e olhavam para os povos vizinhos em busca de um outro modelo para a sua estruturação nacional, o que se expressaria no posterior estabelecimento de um reinado, “à semelhança das outras nações” — como diriam mais tarde ao próprio Samuel (1Sm 8.3).
O silêncio de Deus
Uma das descrições que considero mais dramáticas sobre o momento que o povo de Israel estava vivendo conta que, enquanto Samuel, ainda menino, “ministrava perante o Senhor”, a realidade é que “naqueles dias raramente o Senhor falava, e as visões não eram frequentes” (1Sm 3.1). Essa é uma descrição que assusta, pois o silêncio de Deus é, em última análise, a nossa morte. Em termos positivos se poderia dizer que nós vivemos porque Deus fala: o ar que respiramos, o solo que pisamos, a comida que degustamos, as relações que construímos e a esperança que nutrimos são fruto da realidade de Deus e do seu amor natural e restaurador para cada um e para todos nós. Assim, quando nos afastamos da presença de Deus e a sua Palavra vai se transformando em silêncio, nós estamos vivenciando a nossa própria morte: a esperança vai embora, as relações se rompem, falta comida na mesa de muitos, o solo que pisamos expulsa muitos e o ar que respiramos começa a se poluir. Quando a Palavra de Deus já não ecoa em nosso meio, os sacerdotes se tornam exploradores desavergonhados, os guerreiros morrem nas batalhas, a sociedade entra em crise e vai em busca de algum plano que possa salvar a nação – como na experiência de Israel. Ou, falando da nossa realidade e mudando apenas algumas descrições: as crianças são violentadas, os idosos abandonados, as guerras vão destruindo as vidas e os refugiados já não encontram acolhimento, as intrigas políticas são egocêntricas e “caudilhescas” e a corrupção parece não ter fim e já não há “Lava Jato” que dê jeito. E tudo isso é encontrado dentro e fora da “casa do Senhor”. Então, o nosso coração grita como o salmista: “Até quando, Senhor, até quando?” (Sl 6.3).
E o Senhor falou com o menino
As personagens centrais deste livro nem são as pessoas; é o próprio Deus e a sua palavra-presença. Ele sempre vem novamente e fala sempre de novo. Ele não desiste de nós e sempre encontra maneiras de voltar a chamar-nos para si e para um estilo de vida que nos leve a encontrá-lo e a escutá-lo, expressando assim a nossa plena humanidade e cidadania, de forma individual e coletiva.