Ao desqualificar delator, Temer se autoincrimina
Uma das características fundamentais da dificuldade de julgamento é ter que ouvir uma pessoa durante vários anos para chegar à conclusão de que ela não vale nada. Michel Temer conhece Joesley Batista há coisa de seis anos. Já esteve com o personagem incontáveis vezes. Só agora pecebeu que dava cartaz a um sujeito desonesto e mentiroso. Temer fez hora extra neste sábado para dizer ao país que o dono do Grupo JBS deveria estar preso, não passeando pelas ruas de Nova York. Temer atacou seu delator a pretexto de se defender. Não conseguiu senão autoincriminar-se.
O presidente esteve com o salafrário pela última vez em 7 de março. Recebeu-o no palácio residencial perto de 11 da noite. Sem saber que falava com um grampo a domicílio, tratou-o com rara fidalguia. O inquilino do Jaburu só notou que o visitante tinha traços criminosos depois que virou um delatado. Ao conviver por tanto tempo com um corrupto, Temer revelou-se moralmente ligeiro. Incriminado pelo ex-amigo, mostrou-se intelectualmente lento. Qualquer uma dessas velocidades é um insulto. Nenhuma delas é compatível com o que se espera de um presidente da República.
Temer exibe sua indignação ao país em conta-gotas. Regula a dosagem de sua revolta à evolução dos fatos. Normalmente comedido, soou um tom acima. Em certos momentos, pareceu fora de si, tornando mais fácil enxergar o que tem por dentro. Na superfície, fez pose de presidente injuriado. Entretando, ao defender sua honra recriminando o delator, soou como se ecoasse a orientação que os criminalistas esculpiram no fundo de sua consciência: “Cuidado, você agora é um investigado. Dependendo do que disser, pode tornar-se réu.”
Temer escora-se em reportagem da Folha para desqualificar a gravação do diálogo vadio que manteve com seu algoz. “Li notícia de que perícia constatou que houve edição no áudio de minha conversa com o senhor Joesley Batista. Essa gravação clandestina foi manipulada e adulterada com objetivos nitidamente subterrâneos.” Pediu a suspensão do inquérito em que é acusado de corrupção passiva, obstrução de Justiça e organização criminosa.
Do ponto de vista jurídico, a desqualificação do áudio é o melhor remédio para quem, como Temer, busca livrar-se do afogamento. Ao enviar a gravação ao Supremo Tribunal Federal sem submetê-la a uma perícia minuciosa, o procurador-geral da República Rodrigo Janot ofereceu boa matéria-prima para o esperneio do acusado. Como se fosse pouco, Janot e seus pares deram à turma do JBS um prêmio incompatível com a moralidade. Não há delação que justifique o escárnio de tratar a pão de ló quem merece o pão que Asmodeu amassou.
O diabo é que, do ponto de vista político, a reação de Temer é ineficaz. Para quem está afundando, um jacaré parece tronco. Mas a essa altura a fita de Joesley não passa de um detrito no monturo que se formou na porta do gabinete presidencial. A mera desqualificação do áudio não é suficiente para restaurar os danos.
Ironicamente, o próprio Temer mostrou que a gravação que ele se esforça para desqualificar não é de todo inservível. Fez isso ao ressaltar “as incoerências entre o áudio e o teor do depoimento” de Joesley à Procuradoria. “O que ele fala no seu depoimento não está no áudio. E o que está no áudio demostra que ele estava insatisfeito como meu governo”, disse Temer.
Num dos trechos do áudio que Temer considera fidedignos, o delator expôs o que o presidente definiu como “reclamações contra o minsitro da Fazenda, contra o Cade, contra o BNDES.” Para Temer, as queixas de Joesley são uma “prova cabal de que meu governo não estava aberto a ele.” Bobagem.
Se esse trecho da fita prova alguma coisa é que um empresário corrupto, depois de se defrontar com servidores que se recusavam a atender às suas demanda$, foi cobrar do presidente da República a solidariedade de que se julga credor. E foi plenamente correspondido. Quando o dono do JBS pediu a Temer, por exemplo, um “alinhamento” de posições que lhe permitisse ser mais direto nas cobranças dirigidas ao ministro Henrique Meirelles, Temer assentiu: “Pode fazer isso.”
Temer parece considerar que foi guindado pelas circunstâncias ao cargo de presidente como exemplo. Falta definir de quê! “O autor do grampo relata no diálogo suas dificuldades”, realçou Temer. “Simplesmente ouvi. Nada fiz para que ele obtivesse benesses do governo.” Como assim? Por que, então, indicou o ex-assessor Rodrigo Rocha Loures, hoje deputado federal pelo PMDB do Paraná, para servir de ponte entre a Presidência da República e o delator? “Não há crime, meus amigos, em ouvir reclamações e me livrar do interlocutor indicando outra pessoa para ouvir as suas lamúrias.” Hã, hã…
O que o presidente ainda não percebeu é que dinheiro que Rodrigo Loures, seu interlocutor, recebeu de um portador do corruptor Joesley dias depois da conversa noturna do Jaburu talvez não dê para vestir 5% das desculpas esfarrapadas que a plateia é obrigada a ouvir.
“Houve grande planejamento para realizar esse grampo”, concluiu Temer, flertando com o óbvio. “Depois, houve uma montagem e uma ação deliberada para criar um flagrante que incriminasse alguns, enquanto os criminosos fugiam para o exterior em absoluta segurança.” O que o presidente chama de “ação deliberada” foi, na verdade, uma investigação monitorada pela Procuradoria, sob supervisão do Judiciário.
Nessa investigação, Rodrigo Loures, o intermediário de Temer, foi seguido e fotografado pela Polícia Federal recebendo de Ricardo Saud, executivo da holding J&F, que controla o conglomerado de Joesley, uma mala contendo R$ 500 mil. Trata-se de propina, informou a Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal. Sobre isso, Temer não disse palavra.
Sobre o trecho do grampo em que a Procuradoria enxergou um aval do presidente ao cala-boca monetário que Joesley fornecia ao presidiário Eduardo Cunha, Temer declarou o seguinte: “Não existe isso na gravação, mesmo tendo sido ela adulterada. E não existe porque nunca comprei o silêncio de ninguém. […] É interessante: quando os senhores examinam o depoimento [de Joesley] e o áudio, os senhores identificam que a conexão de uma sentença à outra não é a conexão de quem diz: ‘Olha, eu estou comprando o silêncio de um ex-deputado e estou dando tanto a ele. Não. A conexão é com a frase: ‘Eu me dou muito bem com o ex-deputado, mantenho uma boa relação’. Eu digo: mantenha isso, viu?”
Ou seja: o presidente da República recebe no Jaburu, tarde da noite, um empresário que considera corrupto. Mantém com ele um diálogo antirrepublicano. Nessa conversa, o bandido diz à autoridade máxima do país que conserva sua “boa relação” com Eduardo Cunha, um ex-presidente da Câmara condenado por crimes variados e mantido atrás das grades em Curitiba. Temer reconhece que estimulou o relacionamento entre os dois larápios —“Mantenha isso, viu?”. E acha que está tudo normal. A honestidade, está comprovado, é mesmo uma virtude facilmente contornável.
Depois de dizer coisas definitivas sem definir muito bem as coisa$ que o levaram a abrir as portas do Jaburu para Joesley, protagonista de cinco ações penais, agora um corrupto confesso, Temer falou de um Brasil que sua maleabilidade ética comprometeu. “O Brasil exige que se continue no caminho da recuperação econômica que traçamos, para colocar o país nos trilhos.”
De tanto conviver com a corrupção, o brasileiro adaptou-se às reações das autoridades em apuros. Há método na desfaçatez. Percebe-se como tudo vai acabar. O Brasil deixou de ser um país imprevisível. Tornou-se uma nação tristemente previsível. Temer mantém o compromisso de devolver o gigante aos trilhos. Já é possível enxergar o pus no fim do túnel.
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