domingo, 27 de setembro de 2015

Quod erat demonstratum

Por Antônio Delfim Netto
A maior barbeiragem política e econômica da história recente do Brasil foi a inacreditável remessa ao Congresso de um Orçamento com déficit nominal. Sua interpretação mais amigável foi a de que o Executivo jogara a toalha e confessava a sua impotência! A Standard & Poor’s, surpresa, perplexa e arrependida de nos ter dado um voto de confiança, acelerou o passo. Tomou-nos o grau de investimento e aplicou-nos um viés de baixa, o que deteriorou ainda mais fortemente a visão que o mundo tem do país.
Antes de tentar entender a nova proposta do governo, é preciso saudá-la. Foi um sinal que o Executivo, depois de tantas idas e vindas, também arrependeu-se. Procura, agora, recuperar seu protagonismo. Promete um superávit primário do setor público consolidado (União e unidades federadas) de 0,7% do PIB (estimado para 2016 em R$ 6,3 trilhões), ou seja, qualquer coisa parecida com R$ 43,8 bilhões, dos quais a União proverá R$ 34,4 bilhões (0,55% do PIB), mas, infelizmente, ignora o déficit fiscal estrutural.
No mal inspirado projeto original havia um déficit nominal de R$ 30,5 bilhões. O novo programa propõe, portanto, uma combinação de corte de despesas e aumento de receita da ordem de R$ 64,9 bilhões (34,4 + 30,5, cerca de 1% do PIB) composto por um aparente corte de gastos de R$ 24,7 bilhões que se soma a um aumento das receitas de R$ 40,2 bilhões. Isso sugere um certo “equilíbrio”: a cada R$ 1 cortado “na carne” pelo governo, ele receberia um bônus da sociedade de R$ 1,63 de impostos!
Infelizmente, o retorno da CPMF é um sinal sinistro
Infelizmente, a coisa é mais obscura. Em primeiro lugar, diante da situação falimentar em que se encontram muitos Estados e municípios, parece duvidoso esperar que eles façam superávit primário de 0,15% do PIB. Estão desesperados atrás de uma “carona” de 0,18% na alíquota da sonhada CPMF, que seria elevada a 0,38%. Se tiverem sucesso, assistiremos uma “derrama” igual à que produziu a Conjuração Mineira, no século XVIII.
Qual é, afinal, o “verdadeiro corte” de despesas proposto? Não é fácil saber. Salvo melhor juízo, trata-se: 1) de uma “pedalada” no reajuste do salário dos servidores públicos de janeiro para agosto de 2016, o que representa R$ 7 bilhões. É preciso muito boa vontade para creditá-la como “corte”; 2) do fim do abono “pé na cova”, que pode economizar no curto prazo R$ 1,2 bilhão, mas talvez aumente a despesa no futuro; e 3) de algumas medidas administrativas que adiam gastos que, se bem-sucedidas, representarão R$ 4,3 bilhões.
Somados, atingem R$ 12,5 bilhões. A dificuldade com parte desses “cortes” é que terão de ser negociados com o sindicato do funcionalismo público: o Partido dos Trabalhadores!
Talvez se possa simplificar a exposição. Se somarmos o aumento de impostos de R$ 35,7 bilhões (o valor dos impostos sem o que poderia ser deduzido pelos que recolhem para o Sistema S) ao imaginado corte de despesas, teremos R$ 48,2 bilhões. A diferença entre R$ 64,9 bilhões para produzir 0,55% do superávit primário da União e os R$ 42,8 bilhões é de R$ 16,7 bilhões. O problema é que aqui nada há de “cortes”. Há apenas substituições de fontes usando os recursos dos preços mínimos, do Sistema S e do setor exportador.
De fato, na melhor das hipóteses, o esforço do governo será menor do que 20% do total do ajuste, ou seja, para cada “suposto” corte de R$ 1, ele pede um presente de R$ 4! O resto é aumento de imposto (que reduzirá o crescimento e aumentará a inflação) ou transferência de recursos de setores onde, obviamente, seriam aplicados mais eficientemente.
É possível, por exemplo, comparar a qualidade do ensino no Sistema S (que acaba de ganhar uma olimpíada internacional) com a tragédia do ensino público?
Infelizmente, mesmo sendo parte inevitável de um ajustamento, o retorno da CPMF é um sinal sinistro. Em lugar de aprimorar o sistema tributário nacional, vamos acrescentar-lhe mais um aleijão cumulativo, regressivo, inflacionário e redutor do crescimento econômico. O primeiro inconveniente é provado por definição e o segundo pela pesquisa empírica. O terceiro é evidente: parte, pelo menos, de um imposto de R$ 30 (ou R$ 60) bilhões (entre 0,5% e 1% do PIB), será transferida para os preços.
Quanto ao quarto, o mais grave inconveniente, a prova é aritmética. Ninguém, diante das evidências que jorram, diariamente, das páginas econômicas e policiais das mídias jornalísticas, radiofônicas, televisivas e sociais, pode duvidar que os escassos recursos de que dispõe a sociedade brasileira têm maior produtividade nas mãos do setor privado do que nas mãos do setor público.
Logo, a transferência de 0,5% do PIB (ou, eventualmente, 1%) do setor privado para o público reduzirá o crescimento do PIB. “Quod erat demonstratum” (como se queria demonstrar).
É preciso paciência e conformismo. O PIB vai cair ainda por algum tempo. Apenas a dívida pública bruta/PIB vai continuar crescendo.

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