A arte de ser avó
Por Raquel de Queiroz
Netos são como heranças: você os ganha
sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu.
É, como dizem os ingleses,um ato de Deus.
Sem se passarem as penas do amor, sem os
compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata
de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o
sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo…
Quarenta anos, quarenta e cinco… Você
sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do
que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem as
suas alegrias, as suas compensações – todos dizem isso embora você,
pessoalmente, ainda não as tenha descoberto – mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também
sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade.
Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas
efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu
sutilmente junto com a mocidade.
Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor.
Meu Deus, para onde foram as suas crianças?
Naqueles adultos cheios de problemas que
hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego,
apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas
crianças perdidas. São homens e mulheres – não são mais aqueles que você
recorda.
E então, um belo dia, sem que lhe fosse
imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe
nos braços um menino. Completamente grátis – nisso é que está a
maravilha.
Sem dores, sem choro, aquela criancinha
da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da
mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um
menino seu que lhe é “devolvido”.
E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo e decepção se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho certeza de que a vida nos dá
os netos para nos compensarde todas as mutilações trazidas pela velhice.
São amores novos, profundos e felizes que vêm ocupar aquele lugar
vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis. Aliás, desconfio
muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da
mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos.
Se o Doutor Fausto fosse avó, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto…
No entanto – no entanto! – nem tudo são
flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande
rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por
isso de ser a mãe do garoto. Não importa que ela, hipocritamente, ensine
o menino a lhe dar beijos e a lhe chamar de “vovozinha”, e lhe conte
que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você.
São lisonjas, nada mais.
No fundo ela é rival mesmo.
Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam,
em relação ao neto, papéis muito semelhantes aoda esposa e da amante
dos triângulos conjugais.
A mãe tem todas as vantagens da
domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe de comer,
dá-lhe banho, veste-o. Embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da
rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.
Já a avó, não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, “não ralha nunca”. Deixa lambuzar de pirulitos. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso nos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia.
Uma noite passada em sua casa é uma
deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não
há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa
subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e
comer roquetes, tomar café – café! -, mexer no armário da louça, fazer
trem com as cadeiras da sala, destruir revistas, derramar a água do
gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser – e até fingir
que está discando o telefone.
Riscar a parede com o lápis dizendo que
foi sem querer – e ser acreditado! Fazer má-criação aos gritos e, em vez
de apanhar, ir para os braços da avó, e de lá escutar os debates sobre
os perigos e os erros da educação moderna…
Sabe-se que, no reino dos céus, o
cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém,
esses prazeres não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas
com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda
tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso.
Meu Deus, o olhar das outras avós, com os seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto! E quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz: “Vó!”, seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.
E o misterioso entendimento que há entre
avó e neto, na hora em que a mãe o castiga, e ele olha para você,
sabendo que se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua
incondicional cumplicidade…
Até as coisas negativas se viram em
alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação
que se quebrou porque o menininho – involuntariamente! – bateu com a
bola nele.
Está quebrado e remendado, mas
enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos
arregalados, o beiço pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e
aliviado porque “ninguém” se zangou, o culpado foi a bola mesma, não
foi, Vó?
Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague…
Raquel de Queiroz – (1910-2003) – Escritora cearense
* Texto extraído do livro “O brasileiro perplexo”, 1964.)
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