### - Em 1935 um funcionário do Projeto Federal de Escritores, um órgão do
governo cuja finalidade era registrar histórias de ex-escravos, bateu à
sua porta em Raleigh, Carolina do Norte. Mais de duas mil pessoas foram
entrevistadas. Estas, as remanescentes dos 246 anos de escravidão nos
Estados Unidos, falaram com grande eloqüência.
Contaram que não tinham permissão para ler e escrever nem comprar ou
vender mercadorias. Não podiam freqüentar igreja a menos que fossem
convidadas. As chibatadas eram comuns. O trabalho pesado era uma
realidade.
E quando chegou o momento da liberdade, não estavam preparadas.
Perambulavam pelas estradas à procura de trabalho. Foram vítimas de
oportunistas. A maioria voltou a trabalhar nas mesmas terras dos tempos
da escravidão.
Dentre todas as recordações, a mais vívida e a mais lembrada era a hora
da liberdade. A noite em que os ianques chegaram. O dia em que o amo
lhes disse que estavam livres. A manhã em que entraram na "casa grande" e
a encontraram vazia.
E dentre as histórias de alforria, nenhuma foi tão específica como a de
Mary Barbour. Ela contava dez anos de idade na noite em que seu pai a
acordou e a levou até uma carroça que os conduziria à liberdade.
Antes de você ler sua história, tente visualizá-la sentada na varanda de
sua casa em Raleigh. O ano é 1935. Mary Barbour tem mais de 80 anos.
Balança o corpo enquanto pensa, um corpo franzino afundado em uma enorme
cadeira. Os dedos frágeis tremem quando ela coça o nariz. Os olhos
cansados, porém espertos, fixam-se no infinito como se estivessem
contemplando um pedaço de terra no horizonte. Você se encosta na coluna
de madeira e ouve sua história.
Uma das primeiras coisas de que me lembro é papai me acordando no meio
da noite, vestindo-me no escuro e dizendo-me o tempo todo para ficar
calada. Um dos gêmeos choramingou, e papai colocou a mão em sua boca
para mantê-lo em silêncio.
Depois de estarmos todos vestidos, ele saiu e deu uma espiada por alguns
instantes. Em seguida, voltou e nos pegou. Saímos sorrateiramente da
casa e percorremos um caminho no meio da mata. Papai carregava um dos
gêmeos e segurava-me pela mão e mamãe carregava as outras duas crianças.
Penso que sempre me lembrarei daquela caminhada, com os arbustos batendo
em minhas pernas, o vento soprando nas árvores e as corujas e outros
pássaros noturnos empoleirados em árvores enormes, piando e chamando a
atenção uns dos outros. Eu ainda estava meio dormindo e andava com o
corpo tenso, mas de repente atravessamos a plantação de ameixas e lá
estavam as mulas e a carroça. Havia um acolchoado no chão da carroça
onde nós, as crianças, nos deitamos. Papai e mamãe subiram na boléia e
seguimos pela estrada.
Eu estava com sono, mas também assustada. Enquanto a carroça rodava,
ouvia papai e mamãe conversarem. Papai estava contando a mamãe como os
ianques chegaram à plantação, queimaram as tulhas, os defumadouros e
destruíram tudo. Papai disse em voz baixa que os ianques arrastaram o
amo Jordan até as corredeiras perto de Norfolk, e que ele roubou as
mulas e a carroça e fugiu. - ###
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